segunda-feira, 1 de novembro de 2010

É preciso que o tempo passe, que as coisas mudem, para acharmos que as entendemos e descobrirmos que o mundo é muito maior que nós. Para sabermos que ele é muito maior que todas as perguntas que, por ventura, viemos a fazer a si e aos outros. Ou mesmo as perguntas que fazemos a ninguém, na espera de resposta alguma, apenas do silêncio que nos conforta. Se me permite a filosofia barata, queria perguntar a alguma criatura maior o que é preciso para viver. Mas percebo que qualquer que seja a criatura maior, não falaria comigo a mesma língua, não encontraríamos as mesmas respostas para vontades tão diferentes.

É preciso que a vida tenha muitas faces. E que tenhamos, junto com ela, também. E que possamos nos encantar por cada uma, porque há dias em que se mostra assim tão triste, e tão desgostosa; há dias em que está radiante e formosa. É preciso que a gente insista no seu sorriso, e que o encontre na hora que for. E que saiamos, bem devagar, das respostas mais complexas, até as mais simples. Porque a vida, pra valer, só quer a simplicidade, seja na teoria ou na prática, posto que um abraço valha mais que toda a psicologia sobre relacionamento. A vida deve ser qualquer coisa que goste muito do tato. Por isso, talvez, os livros nunca serão substituídos. Pois sim, é preciso sempre um bom livro do lado, como uma bússola num norte indefinido, e que nos deixemos perder entre o cheiro do papel e as sensações das páginas, porque toda sensação só vive se alçar vôo das linhas e descansar em nós. É preciso que nos deixemos levar, com todo o exagero, nas sensações. A vida não pede passagem e manda que nós não só passemos por ela, e nós devemos ser esse conjunto de sensações inomináveis, que se repetem, que nos competem, que nos desafiam a descobrir. A sensação dos primeiros passos, do primeiro olhar materno, da primeira amizade ingênua, do primeiro beijo atrevido, do primeiro grande amor. Todo amor só é amor se for grande. É preciso que a gente fale menos e ame mais. Ame como os heróis dos romances, como o trabalhador do dia a dia, que ame cansado, que ame disposto, que ame com versos, que ame com silêncio, que ame com raiva ou com paciência, que ame com bons modos ou com indecência, que ame sempre sério ou morra de amar. A vida não pede modelos, mas que a gente ame, cada um ao seu jeito. É preciso que, para amar, a gente desgoste.

Tantas são as manhãs que nos parecem cinzentas, as noites que nos parecem sonolentas, as pessoas que nos parecem sem graça e sem fervor. A vida também nos desafia a desistir. Há dias em que as pessoas não têm sentido, mas por que alguma coisa deve ter sentido? Para isso, é preciso que joguemos as coisas para o ar. É preciso que vejamos na noite um convite para a manhã, e que suemos no calor e que fiquemos bem relaxados na sombra amena. Quando não buscamos mais o sentido das coisas, passamos a encontrar nelas a beleza. É preciso que a beleza seja minha e do outro, e que não faça distinção. Porque é preciso que tenhamos a firmeza do homem e a delicadeza da mulher. Que tenhamos as aventuras mais inesquecíveis. Que cheguemos em casa somente no domingo de manhã, que passemos uma noite de sábado no prazer da família, ao bom filme; que viajemos sem destino, e para isso não precisamos nem sair de casa; que possamos passear na orla num fim de tarde quase poético, e que mergulhemos no mar à meia noite, que fiquemos deslumbrados com as grandes obras, com as cidades iluminadas, mas que achemos bela a discrição do campo; que façamos da natureza nossa inspiração, que saibamos que nosso lugar é um só e é muito, que a criança faminta na nossa porta nos arrase de choro, mas que uma mão solidária sempre pode agir; que somos profissão e diversão, que para isso existem os contatos e existem os amigos, e sempre hei de preferir a fidelidade daqueles e daquelas que me permitem chorar e rir sem limites, porque o mundo formal só é bom quando envolve dinheiro. E que a gente largue de toda formalidade, e que permita ao namorado nos ver ao acordar, mas que, também, paguemos sua entrada no cinema, e mesmo assim rir. Porque é preciso sempre rir, afinal, já diria o amigo que o melhor da tragédia é a comédia de depois. É preciso que leiamos as entrelinhas, que o silêncio diga mais que quase tudo. É preciso que nossa vida seja uma comédia e um drama, uma ação e uma epopéia, mas que seja. E que seja todos os sons do universo. Que a gente ouça o rock da revolta, ou samba do descompromisso, mas que nunca deixemos de exaltar um bom violão e uma bela melodia. Nossos dias são esses acordes que se seguem, e no final teremos feito uma sinfonia. E que a toquemos, para quem quiser escutar. É preciso que nunca deixemos de cantar a família, tão preciosa, cantar os bons valores, e cantar a imoralidade, também. Mas essa, bem baixinho, porque também somos feitos de imagem. É preciso que sigamos os grandes boêmios, e como todo coração humano, cantar o amor. Porque o amor é dessas coisas que seguem os séculos, mas segue também os nossos poucos anos de vida. É preciso que o amor seja sincero, mas que nossa mentira, não envolvendo traição ou desdém, sempre seja para fazer o outro melhor. É preciso que leiamos esse verso bem devagar: é preciso que, por mais duro que seja, aprendamos que amor é o melhor do outro e o melhor de nós. Que a calmaria do outro é a nossa paz, e que a intensidade só se vive se for a dois. É preciso que choremos junto da pessoa amada, que possamos rir juntos do momento mais caótico ou das conversas mais tolas, madrugada adentro. Porque é preciso que para o amor não haja tempo. Ocupação alguma preencherá tanto nossos corações como o desejo de ter o carinho de quem se ama. O amor, acima de tudo, é uma grande escola. O primeiro ensinamento é que o amor debaixo da chuva, com trilha sonora, só existe no filme. O amor, pra valer, é melhor que esteja cara a cara. E é melhor ainda que esteja em dois corações que não cansem de sonhar. Porque é preciso que o amor seja, primeiro, uma coisa bruta que não sabemos lidar. Para depois, enfim, revelar-se tão simples, e tão agitado, e tão impiedoso, e tão indispensável. Para que a gente entenda que ainda não sabe lidar. É preciso que, para viver e para amar, nossa alma se nutra de alguma coisa parecida com o perdão, porque todo amor, por mais rápido que tenha sido um dia, pode voltar a ser eterno.

É preciso que acreditemos na eternidade das grandes coisas, nas crises passageiras, no sorriso como a grande explicação, na mudança como a grande prosa, e na rotina com a grande poesia. É preciso que sejamos poetas de nossas vidas, e que tentemos dizer de tudo, mas acima disso, possamos perceber que a vida, mais do que dita, foi feita para ser vivida.

terça-feira, 22 de junho de 2010

São estes passos despretensiosos a cada ultimato dos dias, que te conferem o vigor de ter ido tão longe. Os demais, os infelizes passos realmente medidos, os que te encharcam de levianas dúvidas, somente te prendem em si, como que se divertindo com tuas tão insistentes hesitações, te oferecendo infinitos caminhos sem sequer te revelar algum. Porque são estes os nossos dias, tomados de atalhos mínimos que decidimos seguir com vigor, que o corpo nos conduz sem atender à palavra indispensável da alma, que sossega e espera. São estes quase todos os dias que se entregam ao desdém da memória. Quando, enfim, daremos vida à coragem que se ficará para sempre?

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Felizmente, não há palavra para tudo. Porque, se houvesse, saberíamos no primeiro instante em que tocássemos o outro e sentíssemos nós mesmos, que a grande rota dos nossos dias se desenharia silenciosa, e percorreríamos em busca do instante em que, insatisfeitos, perceberíamos que mais valia ter dito o que nos foi proibido, que ter vacilado desajeitadamente. Por bem, nos custa saber que continuaremos vacilando, e que as palavras insistem em nos seduzir com o deleite do recanto, com a sabedoria da timidez. As palavras se fingem ingênuas e incapazes de nos revelar, e eis seu brilho incontestável, porque vejo sua gentileza profunda, concebendo a imponência de todos os sentimentos, e permitindo a si mesmo sequer tentar desvendá-los. Palavras são umas poucas crianças que tentamos nos apoiar para nos tornarmos, enfim, adultos. Como criaturas respeitosas, compreendem a sabedoria de todos os sentimentos que nos cercam, a cada vã tentativa de desvendar suas faces. Tento reduzir as palavras, mas elas não se atrevem a reduzir os sentimentos, as sensações percorridas, os anseios puros e atravessados; sabem que certas coisas são intocáveis. As palavras e seus imortais cantadores; vejo todos juntos, discutindo com bondade o quanto falharam, o quanto arderam nos pormenores dos versos, mas tanto que foram cercados por tudo o quiseram dizer, e não conseguiram. É por terem sabido tratá-las como as mais valiosas mulheres, que são grandes, mas é pela delicadeza de terem silenciado quando notaram a maneira singular de cada uma, que são imortais.
Estes dias pedem vigor suficiente para, como as palavras, compreender sentimentos indizíveis, vê-los chegando assim subitamente, contradizer-se de forma natural, aceitá-los muito amiúde, e como as meninas indomáveis, cerrar os olhos e compreender que estas presenças não nos forçam a morte, mas nos incentivam à vida. E, não apenas esses dias, abrigar o infinito ofício de caçar as palavras de maneira incansável, afinal, é isto que fazemos nós, seus dependentes.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Defendo o brasileiro como o canalha mais autêntico entre todos os canalhas, que ardem numas imitações infinitas entre si. Essa intensidade bondosa brilha a cada palavra do sujeito brasileiro, é uma singularidade de dar orgulho. Porém, abro o jornal, numa dessas procuras despretensiosas, que a cada página jogada deixa o suor de umas mãos desesperadas, em absoluto. Um choque. Uma pesquisa, petulante e mansa, anuncia: o brasileiro vai revelar os seus valores. Muito bem, na desmascarada audácia brasileira, há segredos que guardamos nos íntimos de nossas casas, mais que as crias e os contratempos. Portanto, os valores brasileiros são irreveláveis, a família brasileira, o vagabundo brasileiro, o trabalhador diário, os malas, as senhoras, as crianças, todos sabem: o brasileiro abraça com uma mão nas costas, e a outra no bolso. É parte de nosso direito, como dirão os acadêmicos, consuetudinário: não se determine, mas se faça.
Falo dos valores brasileiros porque fujo da glória dos exaltados, mas amo a injúria dos perdedores. Um fato somente prova tudo: eis que o brasileiro diz, em clara e escancarada traição, que o apego ao poder é o ato que mais abomina. Portanto, o poder em último lugar. Numa terra onde o poder nasce com o sol, sobe à cabeça como a hora sem sombra, e morre manso na insatisfação do fim do dia. O brasileiro, como canalha autêntico, perdeu-se. Herdou, não se sabe de onde, o discurso agradável, e finge uma aversão impregnada ao que o construiu como cidadão. Não creio no brasileiro que negue sua própria obsessão ao poder. Se este valor é digno ou não, dirá a mãe, ou os padres, ou os apaixonados. A grande verdade é que lanço o olhar ao longe, e vejo agora o brasileiro num abraço inocente, andando às ruas num passo desapercebido, onde andará o olhar astucioso do brasileiro que ri de sua própria desgraça? Onde se ficou a mão astuta do brasileiro que antes apalpava o couro amigo, e pobre, para inflar sua riqueza fantasiosa? O brasileiro é universal, e não duvido: creio mais no brasileiro que faz do que naquele que diz.
Porque dizer-se um homem de bem é tarefa fácil, fazer o bem ao outro que é difícil. O brasileiro, repito, é o canalha mais autêntico de todos. Somente ele para desprezar a pobreza sua, e conseguir, ainda, desprezar a riqueza dos outros. Que não perca a decência de saber-se assim, fugindo da hipocrisia de dizer o que não é.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Se há uma beleza maior que a paixão, é o espanto. Com uma frase destas, o leitor, se é que o tenho, é capaz de cuspir nestas linhas, com uma veemência feroz e desentendida. Porque quando falo da paixão, falo do espectral, da raridade estendida, mas ainda assim compreensível, e vejo no leitor, no seu olhar de adolescente, uma nostalgia adorável, como uma velha canção em seu ouvido judiado. Mas quando falo do espanto, não. Porque o espanto não sugere o medo por seu nome vilão, mas amedronta pelo desconhecido. Eis a abjeção mais nobre de meu leitor ao espanto. Admito, revelei-o precocemente. Paciência. Guardo o espanto para as linhas derradeiras, subjugo seu poder num lirismo que eu mesmo manipulo, sem escrúpulos, mas não posso impedi-lo de saltar, agora, como um moleque, e atirar, enfim, como um senhor de si mesmo. Repito: a única beleza maior que a paixão é o espanto.
O sujeito apaixonado é um fenômeno irreparável. É como o sujeito convertido. Porque faço da paixão, sim, a religião. Por fim, do sujeito apaixonado não há muito que se dizer. É um fenômeno quase sempre homicida, nas suas peculiaridades cinematográficas, um devaneio quase pensado, esta é a paixão, desmedida e desaconselhada. Mas o sujeito que segue às ruas, no seu firmamento indestrutível, está a um passo do espanto. O sujeito espantado desfigura-se com ardor, não duvido que abandone os princípios, a família, o que for. É como ver-se enfermo de uma doença rara. Rara porque hoje não nos espantamos mais. O espanto é, para nós, como uma volta horrenda a um passado arcaico e indesejável. Hoje, na nossa modernidade egoísta, esquecemos de nos espantar. Entendo o desespero dos espantados. Não há um grande gesto que, hoje, espante. Uma grande obra, um grande dia, um grande ser humano morto. Posto que o verdadeiro espanto esteja nas pequenas coisas. Do tempo em que trair, seja aos outros, ou às suas palavras, espantava um povo que ecoava por anos. Hoje, a traição individual ou coletiva, é uma moda de primeira. Nós, na nossa cretinice geral, estamos diante de um homem que não fraqueja ao se trair, não chora ao matar, não pondera ao degradar. Que somos nós diante da traição, da morte, ou da humilhação? Um belo e unido dar de ombros. O espanto é o rebaixamento de nossos valores de plástico. Nada haverá de espantar, por muitos anos.
Direi pela última vez, como um pregador incansável: se há uma beleza maior que a paixão, é o espanto. Posto que o apaixonado encontre, mesmo raro, um coração que bate por ele; e o espantado, somente olhos de desprezo.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Há pessoas neste mundo encarregadas de dizer verdades absolutas. Não creio no humano coração que bate, desde a infância, pelo desejo de exercer este ofício. Mas creio nos descaminhos do tempo, que levam o sujeito a se formar quase um profeta implacável. Porque este é o caminho. E estas são pessoas que, diga-se, estão nas ruas, nos cafés, nos cercos vis ou familiares, sempre haverá o sujeito para dar luz à verdade que se esconde a cada pudor e a cada receio, ou medo. Talvez a grande obsessão do escritor seja despertar a paixão da verdade, para vê-la, mimosa, entregar-se a ele. Pude acordar aos braços de uma verdade graciosa e incessante, esta manhã. Roubei-la dos jovens que vibram este peito escriba a cada gesto. Sussurrou-me, baixinho: “de que sentes falta, meu bem?” Pude ver seus olhos arderem de certeza, pelo tremor que ouvi esta sentença. Passou-se o tremor a estas mãos ingênuas, e vim, em desespero: onde se ficou a saudade? Onde, canalhas, jogaram esta dama trágica e infiel? Talvez o grande clamor desta majestosa verdade tenha sido lançar-me à busca da saudade esquecida.
Somos humanos sem saudade. Custosa, mas eis a frase. A saudade é uma ardência dolorosa, mas a falta dela que é mortal. Estamos na era do presente, um avanço suicida, mas de um desrespeito cafajeste a todo o resto. À saudade, não restou outro caminho senão abrigar-se no esconderijo dos que a acenam, raramente. Sinto a saudade passear por estes versos, como uma idosa desencantada. E para uns homens cuja velhice é uma comédia, a saudade é uma pilhéria sem comentários. Nossos irmãos vivem a ânsia do agora, a olhadela das horas corridas e incompletas, o nascer do dia sem velar a morte da noite. Porque criamos a maneira de amar, a pressa amorosa, que desconhece os antigos amores. Os amantes de hoje, na sua efemeridade peculiar, negam os amores dramáticos que, um dia, guiaram os corações a mil. Saibam, amantes, a saudade dos teus antecessores arde a cada declaração que soltam. Porque a saudade é uma escola sem igual. Somente a saudade fará os homens amantes aprenderem a amar com a dignidade que lhes é imposta. A saudade ataca, também, os heróis. Hoje, nossos heróis emanam os gritos do povo. O povo, o sujeito do dia-a-dia, o trabalhador, o reacionário, todos eles, mesmo sem saber, desmaiam de saudade pelos antigos heróis. Nossos heróis de hoje esqueceram a bravura, no seu egoísmo gritante. Refletem o povo. Os antigos heróis, antes de tudo, viam o erro do povo, seus dramas e devaneios. E, numa loucura ainda maior, provavam, a custo e fogo, a solução que o povo carecia, e não sabia. Saudades dos heróis totais, nuns heróis de hoje que não vivem senão pelo próprio povo, de tanto o refletir, num medonho esquecimento. A saudade é, também, uma amante e uma heroína. Que de tão dama e tão enobrecida, chora de saudades por suas moças imaginárias. A saudade e sua fragilidade poética, chorando, também, de saudade. Porque a saudade, moça antiga, também foi mulher de se entregar a um verso. Sabia que a palavra encantadora era o primeiro passo de um cavalheiro singular. É a palavra que não têm nossos cavalheiros sem saudade. É o recanto desafiador, é a veneração que não se ostenta mais. A moça que ama, hoje, a elástica beleza superficial, o vácuo vergonhoso de seus amantes que renegam a saudade à dignidade virtuosa, a saudade a uma elegância que, hoje, confunde-se ao ridículo e enamora-se com o desprezo. Esquecemos a própria entrega para se sentir saudade.
Invoco o murmuro manso de minha dama desta manhã: “de que sentes falta, meu bem?”E creio que nestes versos não alcanço a resposta que poderia dá-la noite a noite. Nem alcançarei em verso algum. Porque estes versos são de uma saudade bondosa, que dramatizam a saudade dolorosa a cada sol de hoje. Como um pacificador exausto de chagas, faço de nossa figura dramática a esperança do amanhã, e digo às gerações futuras: não se esqueçam da saudade, mas se esqueçam de nós.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Amigos, há uma insistência escultural dos escritores em resistirem à coletividade, agarrarem-se aos desagrados íntimos, e manifestarem, senhores da sabedoria galgada, a verdade dos dias. Veja só, abro o Rascunho e sinto a chama da provocação arder como uma coitada: “A Permanência da Crônica”. Sinto nas linhas o aroma fétido da inveja. Hoje, antes de escrever, o sujeito inveja. É uma condição humana digníssima, quando pessoal. Quando profissional, a inveja é uma chanchada. É o que move a arte singular dos nossos escribas atuais, é um brilho reprimido dos escândalos inalcançáveis, é quase uma mira certeira na glória infortuna. O escritor é, antes, um caçador de escritores. Toda escrita é pecaminosa, e a seqüela irreparável da genialidade e do brilhantismo é a tortura intelectual e ideológica, é uma mansidão comportamental que declara o vazio literário. Voltemos ao Rascunho.
Tereza Yamashita é destas críticas inapeláveis, que ergue sentenças a cada manifesto natural. Ditou, com o hálito bravo e feroz: “O preconceito em relação à crônica advém de sua dupla origem plebéia: nascidas nas páginas dos jornais, veículo utilitário e descartável, é cultivada em troca de uma remuneração em dinheiro”. Nada mais é necessário. Todas as outras linhas de Yamashita são paisagens cinematográficas para esta tempestade sem igual.
Pensei em escrever-lhe uma carta, meu espanto foi desumano, hipocondríaco. Depois, veio neste coração o súbito anseio de desdenhar. Não se cala o humano coração com tão falsa verdade. Respondo-lhe.
Yamashita, minha leitora nunca antes lida, és uma mocinha absoluta. Cumpriste o papel que te foi dado, com uma dignidade voraz, e creio no respeito às tradições como um gesto fidalgo e merecido. Não apelas, teus companheiros haverão de te concordar. Erguestes, firme, o pilar da intelectualidade. Porque não fugistes à cena. Obedecestes ao caráter perfeito do intelectual: não ouves essas massas que te isentam, és quase uma deusa. Ao dizer que os jornais são utilitários e descartáveis, haverás de ganhar mais uma medalha na academia. E celebrarão, todos. Cuidado, Yamashita. Não temes a solidão? Eu tenho honesto pavor. Apesar de teus louros, haverá sempre o outro dia. Para ti e para teus acadêmicos intelectuais, espanta-me não haver. Vossos dias, de dissertações homéricas e de inteligência incomparável, é um espanto. Crêem na superioridade humana. Sois vós superiores, oh, intelectuais extraordinários? Construam o mundo perfeito de vós. Vossas teorias, vossas ferrenhas à sociedade burra, vossas incompreensões, vossos amores-próprios. Os intelectuais se amam com uma coragem adolescente. Não deixe que este amor revele a carcaça arcaica que escondem. E cumpram a máscara da personagem que encaram todos os dias. A criatura sublime, nunca corrompida pelas idiotices das massas. Nunca a leviandade do dia-a-dia. Vós sois atemporais. Portanto, Yamashita e virtuosos intelectuais, não deixem que as frivolidades dos dias sujem vossas casacas. Apenas, e somente apenas, movam vossos dedos para a exclusividade da matéria. O dia-a-dia é inquietação inútil. É o marco superficial da profundidade que atingiram. Nós, cronistas, que somos personagens desse desconhecer. Intelectuais, deixem que eu fique com a sutileza imperceptível do dia-a-dia. Deixem que me preocupe com as pessoas que não vos ouvem nem enxergam. Deixe-me ver, a cada olhar, o que não vedes em livro algum.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Amigos, a seleção para a copa é um amasso no peito verde-amarelo. É um suspiro fatigado, infimamente crente. Explico. Só restará suspirar a esta seleção, porque a torcida é uma sentença inapelável, o brasileiro indiferente à sua seleção é um suicida, mas é um insaciável absoluto.
O problema da seleção não joga, não treina, não manda. Ele é apenas um esquecimento. Esta seleção é bom time. Mas o Brasil nunca foi um mero time. O grande devaneio em escalar esses homens está na palavra do dia, na menina das manchetes: a coerência. O Brasil, agora, é uma seleção pensada, refletida, coerente, estupidamente óbvia. O futebol só ama o Brasil porque este mesmo Brasil o desrespeita. A camisa canarinha, em campo, é um chute firme nas obviedades futebolísticas, é uma inspiração inacabável, é somente o Brasil. Uma seleção de porte ímpar, de um desdém genial às muralhas dos adversários. Construímos nossa própria muralha. Estamos trancafiados, e achamos essa prisão um paraíso eterno. Amamos esta condição animal. Assim como amamos tachar nossa seleção de “uma seleção de resultados”. Amigos desobedientes, o Brasil nunca se rebaixou a uma seleção de resultados. O Brasil não se importa com os resultados, e eis o grande charme de nossas mais belas camisas canarinhas. O resultado, para o Brasil, é como a métrica para o poeta. É uma ração rotineira e cômica, um motivo digno para os pangarés da coerência se deleitar. Porque o maníaco da coerência precisa do fato. O apaixonado, não. Todo brasileiro é, antes, um apaixonado. Num poema, o maníaco decifra os números de sílabas, versos, as suposições racionais. Num jogo, o maníaco não vê além das quatro linhas. As quatro linhas são apenas o palco. O verdadeiro espetáculo é invisível a tudo. É isto que nos revela um poema, e que nos revela uma seleção de futebol. O amante, o verdadeiro apaixonado, dá de ombros para as regras métricas: o que vale é a epifania. O que vale é o libertar-se, é a beleza incontestável. Bem como nossa seleção, bem como esta seleção. A seleção brasileira é uma dama trágica e espetacular. Se vence, se perde, são preocupações do nosso ilustre personagem. Porque, acima disso, ela deve despertar a paixão. A seleção de 82, com aqueles jogadores geniais; não foi campeã. Fique certo, meu leitor confuso, nunca precisou levar aquele caneco. Aquele Brasil era o do encanto, o do lirismo a cada drible, da ardência a cada passe perfeito, do orgasmo a cada gol. Será lembrado pela eternidade. Esta seleção para África, não duvido, levará o título. É para isto que torço. Além do mais, a imprensa óbvia segue o mesmo caminho de sempre, outras seleções provaram o contrário – tome 1994 e 2002. Pode ser uma seleção eficiente, e nestes ares de competência fingida, cairá bem. Que leve o título, mas saiba caçar as glórias. E que saudemos os campeões, apesar de meu desejo menino de também erguer os heróis.

domingo, 9 de maio de 2010

O Solitário

Meus queridos, há um sujeito, um óbvio velhaco, que nos parece ter dominado em absoluto. Não bastasse esse claro infortúnio, direi uma pior: estou para ver mais carismático que este dito. Evoco, evidentemente, o sujeito solitário. O sujeito solitário é um camarada político, de uma leveza artística em seus domínios, mas de uma precisão avassaladora, em matéria de criação. O solitário perpetuou-se. Tudo o que se conhece, hoje, parte do solitário. Veja nossas relações débeis e apressadas: o solitário conseguiu fazer com que nós admirássemos as mais pernósticas e cômicas condutas. A frieza, esta mesma, é quase um certificado de sobrevivência, bem como a cautela, e os medos. O sujeito solitário é mesmo um rei. Nós é que somos uns bobos –de corte alguma – com o peito inflado de herói. A verdade é que urramos de inveja do solitário, e passamos a copiá-lo, obcecadamente, e eis aonde chegamos. Qualquer coisa abaixo do humano e acima do fingimento. Veja só: entregamos nosso desejo de amar aos versos arcaicos, e ainda que antes nos entregássemos à intensidade do poeta, hoje fazemos ao vazio de nossa solidão. E o mais: a beleza, de um pulsar ausente de ar, de um juramento instantâneo e dramático, é hoje um dar de ombros; bela não é mais a coragem mortal, mas a covardia insossa.
Fui, ou imaginei ser, do tempo em que se passava por cima do sujeito solitário, que era um perdido atirador, vez ou outra emanava num destes movimentos adolescentes ou num raro lapso de rebeldia. Sem receio: olhava com desdém para aquele malcriado, imaginando-o afastado para a eternidade. Hoje, eu sou o rebelde. O sujeito solitário é quem ganhou poder, e eis porque escrevo. O solitário nunca foi um ignorante, mas sua mania de recanto era motivo de piada. Num abrupto lance, certamente premeditado e festejado, o solitário aprendeu a negociar. Hoje, está nas leis. Sem apreciar as farpas emocionais e adversárias, nunca antes o solitário impedira-me de algo. Um solitário homicida, certa vez, disse: fumar é um horror! – então, obedecendo ao princípio da submissão e da idiotice, trabalharam ardentemente para transformar o fumante numa espécie repugnante. Tomaram tudo, e muito mais do que normalmente conter o que for de mal, acharam digno que o cigarro é apenas a paisagem, horrendo mesmo é o sujeito que fuma. Veja só: antes, quando o que valia a pena era o ser humano e suas imprevisões, o sujeito fumava para amar. Era quando Tom Jobim declarava piadas memoráveis em canal aberto, munido de seu potente charuto. E quando Churchil manejava os caminhos da História, e dizia: bebo, fumo, minto e impeço o fim do mundo. Era a grande verdade universal. Hoje, a imagem de um grande homem ficou em segundo plano. Porque, quando se tira do aeroporto Galeão a fotografia de Jobim, que é o grande mestre do Rio de Janeiro, com seu charuto na mão, é a mensagem do solitário: “mais vale nossas leis de saúde fajutas que todos os versos escritos por este poeta leviano e fumante: boemia desordenada, como reagirão nossas crianças a esta cena tão vil?” É o último suspiro de um moralismo ensaiado e enfermo. Os fumantes ficam em casa para não fazer mal aos outros, mas os hipócritas e os rompantes solitários tomam as ruas, numa desmedida colossal.
A cada passo há um tremor dramático, e digo mais: fumar não importa. Bem pouca coisa importa: as vitórias nem um pouco, nem as separações, nem os versos, nem os perigos. O que importa é o drama estupendo por trás de cada trago, o que importa é a alma elevada aos jardins a cada conquista, a lágrima derramada num suicídio total, o pulsar acelerado quando desconhecemos o próximo segundo, o surgimento de uma quimera absoluta em nós mesmos, uma ânsia de paixão e intensidade colhidas nas horas raras, o momento triunfante em que tudo se rompe, a profundeza gigantesca do homem. O resto é ensaio. É tentativa de conter o que o solitário jamais vai conhecer.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Há um consenso fundamental e quase instintivo de se dizer: “o homem delicado, para mim, é uma pilhéria”. O sujeito diz isso com os lábios molhados de dias secos, ardentes como a pilhéria amada. O homem delicado, para a casta honrada e deleitada, é um morto arrastado, é um transeunte infeliz, deslocado, de decisões e devaneios arcaicos, dramáticos e totais.
Há um consenso fundamental e quase instintivo de se dizer: “o homem delicado é uma suave ilusão”. O sujeito diz isso desbravando episódios de uma natureza mais que sentida, acordando sempre numa realidade lenta e insistente, o sujeito é um dependente ardoroso desta realidade. Um obcecado pela timidez dos dias que nada revelam.
Há um consenso fundamental e quase instintivo de calar ao homem delicado. De encontrar-se numa natureza que não dá trégua ao passageiro. De perder-se, enfim, num raio de epifania inexplicável, de querer-se sóbrio quando os olhares embriagam, de só valer a pena quando o invisível é mais dramático que todo um ano, numa fuga diária à coerência das palavras; e que todos os cantos, e todos os versos, e todas aquelas palavras de adoração ou ódio, tudo se esvai num gesto sincero; das revelações amiúde, e da rara ânsia do desprezo, dos desconcertos aos pormenores que surgem das horas mais generosas, da sofreguidão que é bruta, mas é amável, e de umas reclamações sem sentido, sempre esquecidas, de um humor quase poético e de uma constante afirmação nas coisas que valem à pena, mas de uma inconstância permeada de delírio e de vida.
O homem delicado é um transeunte, um obcecado, uma ilusão. Mas não precisa dizer nada mais.

domingo, 2 de maio de 2010

Versos

Vive ainda a esperança, clara e lívida
à espera mansa do desejo,
como de acentuada agonia,
numa mais que infantil investida
escapando do humano devaneio.

Salta, inalcançável,
só assim poderá saber-se
mais que nunca,
e quando em mim crer, ou morrer,
haverei de gravá-la, avulsa:
Esperança, a eterna desatinada
dos corações ingratos.

02/05/2010

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Meus amigos, nunca é tarde para um sujeito despertar de sua suicida lucidez. Nunca dirá somente dela ou para ela num golpe de honra mais que invejável, numa lucidez mais que decadente. É um desacerto, obviamente, posto o atrevimento deste escriba ou de qualquer outro que, perdido nas suas obsessões, não dá graças à tão caçada lucidez. Dizer que ainda é tempo para saltar do paraíso peculiar dos lúcidos é como crucificar-se diante deles, à espera da pedra mais pungente, ou mesmo da palavra mais ofendida. É nesta hora mortal que salto de minha defesa, e vou solitário ao encontro dos honrados luzentes.
O lúcido está em toda esquina, em toda óbvia postura acanhada, de olhos baixos, sempre à espera. Sempre a um passo – para trás – de si mesmo. A saudação do lúcido é antes um passar de olhos sobre seus próprios gestos, como um tirano sobre sua tropa impecável, cujo passo – ou gesto – irresponsável é reprimido com as dores mais indizíveis, somente sentidas nos olhares mais raros. Agora, percebo que o lúcido é um sujeito, também, egoísta. Ora, que pilhéria dirá o interlocutor do lúcido? Para o sujeito lúcido – uma verdade surgida nestas linhas – seu parceiro de conversa é muito pior que o abominável: é o desprezível. Somente o lúcido, em sua ponderação excitante, é o que importa. Mas o interlocutor do lúcido, esse nobre tradutor, é um coitado, decifrando seus pormenores enfadonhos.
Eis que o lúcido imerge, manso, nas profundezas da conversa. Por muito, saiba-se: o lúcido nunca se lançará numa aposta total, quando muito, começará pondo o pezinho na superfície – e este mimo da superfície é a grande paixão do lúcido – enfim, porá o pé na superfície, mas numa procura angustiada e interessante: é quando o abordamos. O lúcido, sujeito esperto, sabe que nos aproximamos. Porque o lúcido procura antes o perigo, que a salvação. Eis toda a verdade sobre o seu suor caçador. O lúcido nunca arriscará sua pele numa entranha desconhecida, mas fará dela seu próprio pensar, suas regras, suas medições e explicações, para que daí se tome o drama. O lúcido é um covarde misericordioso. Se o leitor o fizer em voz alta, que diga “covarde” nos cunhos mais angelicais e harmoniosos. Afinal, o lúcido é um assombro de harmonia. É o único sujeito que sabe, impecável, as misérias que trarão os próximos ares. Por se saber assim quase um mago fundamental, o lúcido fará questão de, numa confissão quase dramática, pôr a mão em nossos ombros, e com a face ainda cercada, lançar-nos: meu querido, não sei se este teu caminho é o ideal. Não esquecendo da sua única paixão, pode-se dizer que uma obsessão delirante do lúcido é a intriga com o caminho. E aqui abro espaço para exaltar sua dignidade messiânica ao nos propor tais reflexões esdrúxulas. O “caminho” do lúcido é semelhante ao nosso caminho mecânico, diário, de casa para o trabalho, ou onde seja. O caminho do dissabor dos falsos dramas, dos olhares gordos desapercebidos, e de um tempo, embora rejeitado, um tempo leal e implacável. São gêmeos esses caminhos, até que, de um imprevisível cansaço do lúcido, partimos além. Porque nosso estimado caminho, de tão mecânico, clama por uma liberdade sincera. Nosso caminho, eis a verdade, é dessa coisa que segue até o ponto onde se desencontra. E só pode dizer caminho porque se desencontra, como nossos gestos atrasados. O caminho nosso abre um ramo, uma fuga total e criminosa, para as leis que o tempo nos prega, e que o lúcido não se desprenderá jamais. Seguimos tamanhos caminhos, numa tamanha insensatez absolvida, emanando desta contrariedade a simplicidade que esta condição nos ofertou. O encaixe estupendo do lúcido é o começo de sua cômica imperfeição. Inflar o peito orgulhoso de um sentimento nobre – e lúcido – é, acima de tudo, o começo do que seja desprovido do humano: a confissão do suicídio. Amigos, nunca é tarde para despertar da suicida lucidez.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Talvez o grande desconcerto dos seres que escrevem, ou mesmo os que apenas vivem, seja tentar imprimir a intensidade de um momento sob a forma mais inédita e mais perfeita. Conhecer Brasília me fez ver, de uma voluptuosidade guardada neste peito escriba, que meus versos, ou os versos de quem quer que seja, rastejam para um sacrifício, para um fracasso total. Eis onde se encontram. Não julgo injusto ou indigno, pois a Rainha do Planalto, muito digna e muito dama de si mesma, saberá reconhecer, pois sim, meus vis esforços.
Brasília é um elegante sopapo na cara do sujeito brasileiro. O resto é enfeite. Prova-se, nela, seu desprezo monumental pelos pormenores austeros da política, seu desenrolar absurdo por formas imensuráveis, porque Brasília é, antes de uma cidade, um mundo. Nada nela decai sobre a infeliz objetividade dos números enfadonhos, nada se compara. Penso que Brasília e Don Corleone são as únicas instituições capazes de nos fazer ver como somos pequenos. Elevou-se da descrença do planalto, de uma bravura sanguinária de Juscelino desmedido, de um compromisso descompassado de um Niemeyer libertário, de uns candangos personagens brasileiros ímpares, e se deu à luz. Brasília é um caso único de ter nascido grande e, espantosamente, estar sendo grande. Mas é humilde e sabe voar para encontrar a dignidade. Sabe, por entre suas curvas inconcebíveis, mesmo a olhos venenosos e infantis, saudar os homens de sua pátria. Por isso, não existe o brasiliense. Todos, em Brasília, estão de passagem, inclusive os presidentes, veja só. Talvez seja por este ente passageiro de Brasília que o que se firmou em nossa terra parece ser de uma falta maior. Infla-se o sentimento único do novo, mas sangra o sentimento de uma saudade sem igual, algo incompleto que a terra promete recordar. Todos, em Brasília, estão a um passo mais largo de sua incompletude. Jamais uma incompletude frustrante, ou negativa. A incompletude dos saudosos de Brasília é um ardor para irmos além. É um céu, como o quase infinito do planalto, que vai se expandindo. O nosso horizonte por entre a história do país. Um horizonte agora imensurável ante a proporção da capital.
Beijo a fronte desta madame dramática, no respeito menino do intocável, mas desejo, como que dilacerado por uma paixão inédita, levar-me vagabundamente por estas curvas irreais. Curvas sem igual de uma cinquentona encantadora.


Quinta, 22 de Abril, no jardim elevado do Congresso Nacional.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

7

O silêncio tem todos os motivos para vingar-se das palavras, menos um: o próprio silêncio. É o personagem inédito de um drama sem escrúpulos. Enquanto caminhávamos incertos pelos anais do tempo, numa destas nostalgias viscerais, ele devorava nossos sentidos, mas brando e fiel. A grande verdade é que o silêncio lançou sua lasciva ternura sobre nossa pequenez, e nos entregamos como adúlteros apaixonados. De repente, do silêncio fez-se o homem – diria o poeta. E é de um tanto repentino essa paixão escancarada, que nós, que fazemos de um mero toque a eternidade dos corpos, agitamos a esse fenômeno ideal.
Depois do primeiro olhar, parece que todo o resto perde a nitidez, todas as afirmações derramam-se em equívocos, toda a insurdescência de um batalhão de palavras rendeu-se a um digno e prosaico herói: o eminente silêncio. Está estampado em nossos peitos guerreiros: “pondero e calo”. Eis a veemência do sujeito decisivo dos dias modernos. Não nos cabe mais a desonra das palavras prolixas e das repetições impacientes, o grande sábio das ruas, das praças, dos campos da sabedoria, o grande guia dos espíritos ou mesmo o jovem inconseqüente, todos eles agora calam. É uma saída majestosa, que somente o sujeito de uma pertinência sublime é capaz de inventar. O silêncio por si – aliás, todas as coisas por si – é um diamante bruto e valioso. O grande charme do silêncio é que aprendemos a amá-lo. Amamos o silêncio e estamos também aprendendo, pedra sobre pedra, a torná-lo parte de nosso instinto. Não demora e o silêncio, numa bajulação darwiana, será um diagnóstico de nossa sobrevivência. As guerras, os amores, as conquistas e os sofrimentos; o tempo tratará de torná-los efêmeros e medianos. O silêncio, não. O silêncio esnoba do tempo, como uma criança mimada. Há de cuspir em nossas caras, e sentiremos prazeres inarráveis, pedindo outras e outras doses, insaciáveis. Porque, e agora já não sei se sorrio ou fecho a cara, porque o silêncio estará em nosso sangue como nossa inseparável preguiça. E por saber-se mais que nada, é que amamos esse rapazote de meios-gestos.
As palavras, estas sim, são as senhoras gordas na passarela da beleza. Somente o sujeito desesperado, e deveras traído, ainda a ama. Ele não precisa marcar em si o gume da traição, porque se trai por si, por ser ainda um gritante apaixonado, um inacreditável amante das palavras, logo as palavras, logo a marcha ré de nossos trilhos, mesmo que andemos a mil. O amante das palavras anda perdido na sua própria descrença, porque ama aquilo que não encanta nem mais aos casais fiéis; o amante das palavras tornou-se um triste defensor de minorias, e quando o sujeito propõe-se a isso, não precisa jogar-se a nenhum tipo de desmerecimento. O amante das palavras é, antes de tudo, um tolo. Já não sei se por sua idealização secular, ou por qualquer coisa de espantoso nas curvas líricas dessas palavras cada vez mais escassas. Não há palavra que não seja trágica em sua essência mais sádica. O repúdio reacionário à palavra explica-se antes pela dita cuja, que pelos seus acusadores: a palavra suga um homem até vê-lo nu e extasiado, e ela é imortal, não importando ser um homem de bem ou um canalha, todo ele que se atreva a conceber a palavra, está concebendo, também, a própria escravidão. Eis única verdade que exala a cada verso: o desamor à palavra é de uma covardia atlética, nobríssima, amável. O homem covarde é ululante, e ainda assim é um espelho para as gerações seguintes. É por não se saber mais que covarde, que fugimos da austera palavra, e está explicado. E é por sermos gloriosos indigentes, que nos jogamos aos braços do silêncio amigo.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Breve Resenha sobre Pink Floyd: The Wall (1)

Com carinho, ilustre Maga:

Ao passo calmo e errante, de uma imprecisão que de tão silenciosa é mais que um grito infinito, o muro vai se erguendo assim sem ordens, sem fronteiras já antes ditadas, senão pelos limites mais humanos e mais desconhecidos dessa humanidade enfim revelada, desses erros assim escondidos em cada olhar que nos nega, medonhos como a epifania mais desesperadora, mas natural como o desespero a cada amanhecer. É, enfim, o muro dos mais absurdos sonhos e da inexistência mais indiferente, mas é um muro: límpido, avassalador, ditador. Não somente cresce como cerca, e cerca como a loucura crescente, surgida senão de uma dúvida, já não se sabe se somos mais um tijolo no muro ou se o somos por completo. Enfim, muro cada vez menor aos olhos dos libertados, mas gigantesco ao frágil e desconexo coração humano, tão menino, ainda que tão ousado. Eis o homem jogado ao seu próprio muro, incerto quanto a sua própria lucidez e sua coragem, incerto sobre sua existência, que de tão efêmera é quase um sopro despretensioso, mas é, sobretudo, incômodo. É senão um vento fortíssimo que vai empurrando o muro, vai fechando-o como que uma ferida dolorosa, e não há espaço para ninguém a não ser a nós mesmos. Estamos sós na escuridão gritante de nossos muros. Imploramos essa solidão, sonhamos com ela, mas quando em face dela, resta-nos procurar o irmão mais próximo, mas ele é ausente: está do outro lado do muro. O tempo é curto e o espaço é mínimo, não cabemos mais do lado de fora: é quando dentro de nós há uma imensidão, e é nela que, atônitos e instintivos, vamos nos jogar,
The Wall é a manifestação musical de todo o emaranhado de pensamentos, sensações e desconcertos que há em nós. Um choque. Um choque de verdades que nos esbofeteiam a cada segundo e nos fazem estar de pé, ainda que tantas vezes estejamos cansados o suficiente para não seguir em frente.

Breve Resenha sobre Pink Floyd: The Wall (2)

O álbum, em sim – mesmo que classificado como ópera-rock, experimental, essas classificações não têm valor diante da obra – foi produzido no conturbado ano de 1979. Conturbado e nada favorável aos padrões floydianos de músicas, visto o crescimento de bandas de Punk Rock, seguindo a rejeição às músicas de cunho psicodélico e reflexivo que permeavam os anos 1960. Um primeiro passo para a ignorância escancarada dos nossos dias. Além disso, foi um marco para o fim do Pink Floyd. Sendo o álbum quase uma auto-biografia do baixista Roger Waters, que não soube medir seu desejo de impor suas idéias, acabando por querer determinar toda a rotina de produção da banda, que culminou numa briga judicial das mais constrangedoras e importantes, na história da música. É um álbum desnecessário, por tudo o que a banda já havia dito nos álbuns anteriores, mas a sua inutilidade é sobretudo encantadora e misteriosa, e faz do The Wall um convite a uma viagem singular. Uma viagem por si mesmo, mostrando que o homem é antes um oceano de contradição e intensidade, que um vazio constante e óbvio.
O álbum, em sua tamanha magnitude, deu origem ao filme, produzido logo em 1982. Pink Floyd: The Wall não tem, nem precisar ter grandes diálogos. É quando a existência fala por si. Pink caminha pelo tempo tropeçando em perdas – como a do pai, morto na II Guerra – e de relações indiferentes e incômodas, tome a mãe obsessiva – presente, principalmente, na música Mother, de uma beleza solitária – e do professor rígido e incompreensível – na aclamada Another Brick in The Wall. O filme, na atuação dos atores – principalmente Bob Geldof, no papel de Pink, mais velho – foi tantas vezes citado como incompetente na representação do álbum. É uma mentira que ecoa vagamente e por repetições equivocadas. A leitura não se deve restringir ao metodismo do certo e do errado, mas respeitar a subjetividade do que se está lendo. O filme é intrigante, do começo ao fim. É a perturbação a cada segundo, no olhar das personagens, nos seus gestos, no lirismo de cada música, na recepção de cada espectador. Pink depara-se com o pai morto, mas com o tempo ele vai, também, morrendo, por se crer vazio, por caçar sem sucesso um sentido para si. Não há vida que tenha sentido, Pink, nem o deve ter, e é justamente pela falta dele que vamos criando nossos diferentes nortes e trilhando nossos sedutores caminhos. Essa é a grande página do The Wall. É a narrativa da vida, desde as descobertas infantis aos pormenores das convivências e as batalhas enfrentadas ao longo da vida adulta. Todas as letras das músicas,- vale saber que poucas músicas do álbum são cantadas no filme - obedecendo sua ordem postada, declaram isso. Pink tem o pai morto na guerra, a mãe o controla até onde seja possível – “Mamãe vai sempre descobrir por onde você esteve/ Mamãe vai sempre manter o bebê saudável e limpo” - o professor o tem como alvo – “Quando nós crescemos e fomos para a escola/ Haviam certos professores/ Que machucavam as crianças de qualquer forma possível”. Eis que Pink cresce, vira um grande artista do rock, mas sofre como sua adaptação ao mundo, ou a falta dela. As cenas percorrem estagnadas e atraentes ao longo dos conflitos que seguem, como se o pesar pela infelicidade do outro pesasse em nós. Mas há que se pensar a forma como encaramos essas situações. O filme está embriagado de um pessimismo profundamente simbólico, mas excessivo. Verdadeiramente árido de se encarar, como se a única saída para um mundo que não nos aceita seja a criação de um novo mundo, totalmente íntimo e desordenado em alucinações, cercado por um muro que nos distancia de toda e qualquer realidade insistente e indesejada. É uma saída, não sendo a única. Num certo momento, Pink se vê esgotado. É o cume de sua introspecção e loucura. Numa cena fortíssima, totalmente raspado, inclusive as sobrancelhas, Pink se vê dopado e sem saída, quando o incontido Si menor inicial de Comfortably Numb é disparado, inconseqüente. Surge uma das mais emblemáticas e autênticas músicas do Pink Floyd. Comfortably Numb é o mergulho descuidado de insensatez. É quando destrinchamos cada cenário deste mundo paralelo e cada vez mais dono de seu criador. Num mesmo devaneio, Pink se vê um ditador implacável, manipulador de uma legião de seguidores, mandando seus opositores contra o muro. É uma óbvia alusão ao sistema Nazista, prova das preocupações sociais contidas no álbum e no filme. Pink já não está em si. Parece a vitória de todos os que o fizeram um jovem reprimido, e sua desistência é iminente. É o final de um labirinto somente percorrido por espectadores sem fôlego, que num julgamento surreal poderão ver seus muros como uma prisão ou um escape à própria liberdade.
Numa mistura de êxtase e contemplação, cerramos nossos olhos ao fim do filme. Quando tornamos a abrir, já não são mesmas as coisas, nem nossos olhares apressados ao mundo que encaramos despercebidos. Talvez a grande mensagem do filme não seja sobre muro algum, nem ilusão alguma. Mas que nossa existência é qualquer coisa real e valiosa a ponto de não entendermos nunca, mas encará-la. E que nossas vidas, antes de estarem presas num muro imensurável, podem estar pobremente sujas como a garrafa que o menino limpa no final do filme. Talvez não seja preciso nos isolar para mudar o mundo, mas limparmos nossos corações e seguir em frente.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

O Diamante Louco em cada um

http://www.youtube.com/watch?v=vyqgjCKm9nQ

Capaz de mostrar todo o emaranhado de beleza e loucura de cada um. Para essa, as palavras se apagam.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Se

Das obsessões que tenho, só uma me tira o sono: o apelo do “se”. Não são tardinhas leves que se vão, em imaginações esparsas, mas noites profundíssimas, dias a fio, horas espantadas de um desejo homérico e covarde pela sílaba mais homicida da língua. Sujeito me vê exausto no dia seguinte, pensa nas boas mulheres. Digo, então, que foi o “se”. Prefiro já não dizer mais nada.

O “se” é uma dama de faces dramáticas. Tantas são, e tão dilacerantes, que deve ser divino. Esconde-se a cada esquina e, de súbito, lança o olhar de moça malcriada, dissimulada por si mesma, e então, já não há mais o erro ou o acerto, apenas o desejo. Creio que compartilhar a dor do “se” é uma forma de misericórdia, é a constatação de minha mediocridade. Quantas foram as vezes que poderia não me ter visitado por simplesmente não existir, e mais, quantas vezes poderia tê-lo extinguido com impiedade, quando o dei à vida, embora fosse um infecundo; criamos a cada “se” um veneno abjeto, infalível, cravado irrevogavelmente; e, então, é aguardar a agonia. Não há dor física que se compare a dor do “se”. Perde-se um olhar a cada instante, uma vida a cada instante, mas nunca o “se” há de se perder, em instante algum. Porque disso somos feitos. Nem gentilezas ou mentiras, amor ou ódio, riqueza ou miséria. Entregue em nossos rostos frágeis, somos feitos de “Se”.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A Última Flor da Primavera

A juventude acabou. Ela não está disfarçada ou descuidada; ela acabou, absolutamente. Quem dera dizer que as aflições juvenis tivessem se misturado à nobre sabedoria da velhice, vagando por entre as idéias contraditórias desta florida idade, mas não, muito tristemente não, os jovens acabaram porque desistiram de existir. Quando não há mais o desejo, não há mais nada. Aceitaria de muito bom humor se um sujeito jovem me viesse contrariar, dizendo que, entre outras coisas, a juventude é a esperança, e disso não podemos desistir. Não me dou com o ceticismo, que acho vago e atraente; mas há uma questão crucial que nos joga à beira do abismo: para nós, jovens, o que é do mais profundo desejo? O erro do jovem estaria, nesta situação, em lançar os olhos à palavra “desejo”. Estamos cegos. O mal da superficialidade nos tirou a visão. E, numa filosofia fajuta, porém eficiente, conclui-se que não conseguimos mais enxergar o que viria a ser “profundo”.
Não há de se dar culpa à mídia, nem há de se dar culpa às gerações passadas, que também eram imperfeitas, porque seria o lógico, o pragmático. Já não há espaço para o que não seja óbvio, leviano, posto que quando jogados ao labirinto que realmente somos, não encontraríamos, nunca, uma saída; porque a busca por se desvendar, que é o que deve haver de mais digno num ser humano, hoje é uma pilhéria. Os triunfos de ontem são os fracassos de hoje. Estou sendo radical? Radicais são os jovens, que não acreditam mais no amor. Veja só, o pilar indestrutível de nossos desejos, motivo de vida e morte, cantado há séculos, mesmo que escorrido no prolixo, unindo os corações mais dilacerados: o Amor, que hoje nos parece um devaneio, uma piada. Orgulhamos-nos de cuspir nos valores que nós mesmos construímos, de trajarmos num manto de solidão, de recusarmos o abraço, – mesmo que de súbito – de construir nossa existência com a mais prática e repetida fórmula; somos excessivamente ponderados, enfadonhamente repetitivos, nossos atos perderam a dramaticidade, nossos atos já não são heróicos e utópicos, já não há causa alguma, mesmo que perdida, recuamos à paixão, simples e errante, pelo prazer de sonharmos e conhecermos o novo, e, obedecendo ao Tratado Geral dos Chatos, não nos entregamos nem a nós mesmos; as nossas senhoritas – veja só que arcaico, com treze anos já se é uma senhora – não largam os senhores por um descompromissado soneto, que já não emociona, e nossa lágrima escorre obrigada, porque nossos amigos já não choram; resta somente chorar a alma, avulsa dilacerada, pois ela não saberemos domesticar jamais.
Esta minha geração se dará, um dia, ao prazer de conhecer o tempo. Que não seja fatal, mas, sobretudo, singelo, para que possam acenar com a simplicidade e a elegância juvenis que a vida sabe premiar.