domingo, 9 de maio de 2010

O Solitário

Meus queridos, há um sujeito, um óbvio velhaco, que nos parece ter dominado em absoluto. Não bastasse esse claro infortúnio, direi uma pior: estou para ver mais carismático que este dito. Evoco, evidentemente, o sujeito solitário. O sujeito solitário é um camarada político, de uma leveza artística em seus domínios, mas de uma precisão avassaladora, em matéria de criação. O solitário perpetuou-se. Tudo o que se conhece, hoje, parte do solitário. Veja nossas relações débeis e apressadas: o solitário conseguiu fazer com que nós admirássemos as mais pernósticas e cômicas condutas. A frieza, esta mesma, é quase um certificado de sobrevivência, bem como a cautela, e os medos. O sujeito solitário é mesmo um rei. Nós é que somos uns bobos –de corte alguma – com o peito inflado de herói. A verdade é que urramos de inveja do solitário, e passamos a copiá-lo, obcecadamente, e eis aonde chegamos. Qualquer coisa abaixo do humano e acima do fingimento. Veja só: entregamos nosso desejo de amar aos versos arcaicos, e ainda que antes nos entregássemos à intensidade do poeta, hoje fazemos ao vazio de nossa solidão. E o mais: a beleza, de um pulsar ausente de ar, de um juramento instantâneo e dramático, é hoje um dar de ombros; bela não é mais a coragem mortal, mas a covardia insossa.
Fui, ou imaginei ser, do tempo em que se passava por cima do sujeito solitário, que era um perdido atirador, vez ou outra emanava num destes movimentos adolescentes ou num raro lapso de rebeldia. Sem receio: olhava com desdém para aquele malcriado, imaginando-o afastado para a eternidade. Hoje, eu sou o rebelde. O sujeito solitário é quem ganhou poder, e eis porque escrevo. O solitário nunca foi um ignorante, mas sua mania de recanto era motivo de piada. Num abrupto lance, certamente premeditado e festejado, o solitário aprendeu a negociar. Hoje, está nas leis. Sem apreciar as farpas emocionais e adversárias, nunca antes o solitário impedira-me de algo. Um solitário homicida, certa vez, disse: fumar é um horror! – então, obedecendo ao princípio da submissão e da idiotice, trabalharam ardentemente para transformar o fumante numa espécie repugnante. Tomaram tudo, e muito mais do que normalmente conter o que for de mal, acharam digno que o cigarro é apenas a paisagem, horrendo mesmo é o sujeito que fuma. Veja só: antes, quando o que valia a pena era o ser humano e suas imprevisões, o sujeito fumava para amar. Era quando Tom Jobim declarava piadas memoráveis em canal aberto, munido de seu potente charuto. E quando Churchil manejava os caminhos da História, e dizia: bebo, fumo, minto e impeço o fim do mundo. Era a grande verdade universal. Hoje, a imagem de um grande homem ficou em segundo plano. Porque, quando se tira do aeroporto Galeão a fotografia de Jobim, que é o grande mestre do Rio de Janeiro, com seu charuto na mão, é a mensagem do solitário: “mais vale nossas leis de saúde fajutas que todos os versos escritos por este poeta leviano e fumante: boemia desordenada, como reagirão nossas crianças a esta cena tão vil?” É o último suspiro de um moralismo ensaiado e enfermo. Os fumantes ficam em casa para não fazer mal aos outros, mas os hipócritas e os rompantes solitários tomam as ruas, numa desmedida colossal.
A cada passo há um tremor dramático, e digo mais: fumar não importa. Bem pouca coisa importa: as vitórias nem um pouco, nem as separações, nem os versos, nem os perigos. O que importa é o drama estupendo por trás de cada trago, o que importa é a alma elevada aos jardins a cada conquista, a lágrima derramada num suicídio total, o pulsar acelerado quando desconhecemos o próximo segundo, o surgimento de uma quimera absoluta em nós mesmos, uma ânsia de paixão e intensidade colhidas nas horas raras, o momento triunfante em que tudo se rompe, a profundeza gigantesca do homem. O resto é ensaio. É tentativa de conter o que o solitário jamais vai conhecer.

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