quinta-feira, 29 de abril de 2010

Meus amigos, nunca é tarde para um sujeito despertar de sua suicida lucidez. Nunca dirá somente dela ou para ela num golpe de honra mais que invejável, numa lucidez mais que decadente. É um desacerto, obviamente, posto o atrevimento deste escriba ou de qualquer outro que, perdido nas suas obsessões, não dá graças à tão caçada lucidez. Dizer que ainda é tempo para saltar do paraíso peculiar dos lúcidos é como crucificar-se diante deles, à espera da pedra mais pungente, ou mesmo da palavra mais ofendida. É nesta hora mortal que salto de minha defesa, e vou solitário ao encontro dos honrados luzentes.
O lúcido está em toda esquina, em toda óbvia postura acanhada, de olhos baixos, sempre à espera. Sempre a um passo – para trás – de si mesmo. A saudação do lúcido é antes um passar de olhos sobre seus próprios gestos, como um tirano sobre sua tropa impecável, cujo passo – ou gesto – irresponsável é reprimido com as dores mais indizíveis, somente sentidas nos olhares mais raros. Agora, percebo que o lúcido é um sujeito, também, egoísta. Ora, que pilhéria dirá o interlocutor do lúcido? Para o sujeito lúcido – uma verdade surgida nestas linhas – seu parceiro de conversa é muito pior que o abominável: é o desprezível. Somente o lúcido, em sua ponderação excitante, é o que importa. Mas o interlocutor do lúcido, esse nobre tradutor, é um coitado, decifrando seus pormenores enfadonhos.
Eis que o lúcido imerge, manso, nas profundezas da conversa. Por muito, saiba-se: o lúcido nunca se lançará numa aposta total, quando muito, começará pondo o pezinho na superfície – e este mimo da superfície é a grande paixão do lúcido – enfim, porá o pé na superfície, mas numa procura angustiada e interessante: é quando o abordamos. O lúcido, sujeito esperto, sabe que nos aproximamos. Porque o lúcido procura antes o perigo, que a salvação. Eis toda a verdade sobre o seu suor caçador. O lúcido nunca arriscará sua pele numa entranha desconhecida, mas fará dela seu próprio pensar, suas regras, suas medições e explicações, para que daí se tome o drama. O lúcido é um covarde misericordioso. Se o leitor o fizer em voz alta, que diga “covarde” nos cunhos mais angelicais e harmoniosos. Afinal, o lúcido é um assombro de harmonia. É o único sujeito que sabe, impecável, as misérias que trarão os próximos ares. Por se saber assim quase um mago fundamental, o lúcido fará questão de, numa confissão quase dramática, pôr a mão em nossos ombros, e com a face ainda cercada, lançar-nos: meu querido, não sei se este teu caminho é o ideal. Não esquecendo da sua única paixão, pode-se dizer que uma obsessão delirante do lúcido é a intriga com o caminho. E aqui abro espaço para exaltar sua dignidade messiânica ao nos propor tais reflexões esdrúxulas. O “caminho” do lúcido é semelhante ao nosso caminho mecânico, diário, de casa para o trabalho, ou onde seja. O caminho do dissabor dos falsos dramas, dos olhares gordos desapercebidos, e de um tempo, embora rejeitado, um tempo leal e implacável. São gêmeos esses caminhos, até que, de um imprevisível cansaço do lúcido, partimos além. Porque nosso estimado caminho, de tão mecânico, clama por uma liberdade sincera. Nosso caminho, eis a verdade, é dessa coisa que segue até o ponto onde se desencontra. E só pode dizer caminho porque se desencontra, como nossos gestos atrasados. O caminho nosso abre um ramo, uma fuga total e criminosa, para as leis que o tempo nos prega, e que o lúcido não se desprenderá jamais. Seguimos tamanhos caminhos, numa tamanha insensatez absolvida, emanando desta contrariedade a simplicidade que esta condição nos ofertou. O encaixe estupendo do lúcido é o começo de sua cômica imperfeição. Inflar o peito orgulhoso de um sentimento nobre – e lúcido – é, acima de tudo, o começo do que seja desprovido do humano: a confissão do suicídio. Amigos, nunca é tarde para despertar da suicida lucidez.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Talvez o grande desconcerto dos seres que escrevem, ou mesmo os que apenas vivem, seja tentar imprimir a intensidade de um momento sob a forma mais inédita e mais perfeita. Conhecer Brasília me fez ver, de uma voluptuosidade guardada neste peito escriba, que meus versos, ou os versos de quem quer que seja, rastejam para um sacrifício, para um fracasso total. Eis onde se encontram. Não julgo injusto ou indigno, pois a Rainha do Planalto, muito digna e muito dama de si mesma, saberá reconhecer, pois sim, meus vis esforços.
Brasília é um elegante sopapo na cara do sujeito brasileiro. O resto é enfeite. Prova-se, nela, seu desprezo monumental pelos pormenores austeros da política, seu desenrolar absurdo por formas imensuráveis, porque Brasília é, antes de uma cidade, um mundo. Nada nela decai sobre a infeliz objetividade dos números enfadonhos, nada se compara. Penso que Brasília e Don Corleone são as únicas instituições capazes de nos fazer ver como somos pequenos. Elevou-se da descrença do planalto, de uma bravura sanguinária de Juscelino desmedido, de um compromisso descompassado de um Niemeyer libertário, de uns candangos personagens brasileiros ímpares, e se deu à luz. Brasília é um caso único de ter nascido grande e, espantosamente, estar sendo grande. Mas é humilde e sabe voar para encontrar a dignidade. Sabe, por entre suas curvas inconcebíveis, mesmo a olhos venenosos e infantis, saudar os homens de sua pátria. Por isso, não existe o brasiliense. Todos, em Brasília, estão de passagem, inclusive os presidentes, veja só. Talvez seja por este ente passageiro de Brasília que o que se firmou em nossa terra parece ser de uma falta maior. Infla-se o sentimento único do novo, mas sangra o sentimento de uma saudade sem igual, algo incompleto que a terra promete recordar. Todos, em Brasília, estão a um passo mais largo de sua incompletude. Jamais uma incompletude frustrante, ou negativa. A incompletude dos saudosos de Brasília é um ardor para irmos além. É um céu, como o quase infinito do planalto, que vai se expandindo. O nosso horizonte por entre a história do país. Um horizonte agora imensurável ante a proporção da capital.
Beijo a fronte desta madame dramática, no respeito menino do intocável, mas desejo, como que dilacerado por uma paixão inédita, levar-me vagabundamente por estas curvas irreais. Curvas sem igual de uma cinquentona encantadora.


Quinta, 22 de Abril, no jardim elevado do Congresso Nacional.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

7

O silêncio tem todos os motivos para vingar-se das palavras, menos um: o próprio silêncio. É o personagem inédito de um drama sem escrúpulos. Enquanto caminhávamos incertos pelos anais do tempo, numa destas nostalgias viscerais, ele devorava nossos sentidos, mas brando e fiel. A grande verdade é que o silêncio lançou sua lasciva ternura sobre nossa pequenez, e nos entregamos como adúlteros apaixonados. De repente, do silêncio fez-se o homem – diria o poeta. E é de um tanto repentino essa paixão escancarada, que nós, que fazemos de um mero toque a eternidade dos corpos, agitamos a esse fenômeno ideal.
Depois do primeiro olhar, parece que todo o resto perde a nitidez, todas as afirmações derramam-se em equívocos, toda a insurdescência de um batalhão de palavras rendeu-se a um digno e prosaico herói: o eminente silêncio. Está estampado em nossos peitos guerreiros: “pondero e calo”. Eis a veemência do sujeito decisivo dos dias modernos. Não nos cabe mais a desonra das palavras prolixas e das repetições impacientes, o grande sábio das ruas, das praças, dos campos da sabedoria, o grande guia dos espíritos ou mesmo o jovem inconseqüente, todos eles agora calam. É uma saída majestosa, que somente o sujeito de uma pertinência sublime é capaz de inventar. O silêncio por si – aliás, todas as coisas por si – é um diamante bruto e valioso. O grande charme do silêncio é que aprendemos a amá-lo. Amamos o silêncio e estamos também aprendendo, pedra sobre pedra, a torná-lo parte de nosso instinto. Não demora e o silêncio, numa bajulação darwiana, será um diagnóstico de nossa sobrevivência. As guerras, os amores, as conquistas e os sofrimentos; o tempo tratará de torná-los efêmeros e medianos. O silêncio, não. O silêncio esnoba do tempo, como uma criança mimada. Há de cuspir em nossas caras, e sentiremos prazeres inarráveis, pedindo outras e outras doses, insaciáveis. Porque, e agora já não sei se sorrio ou fecho a cara, porque o silêncio estará em nosso sangue como nossa inseparável preguiça. E por saber-se mais que nada, é que amamos esse rapazote de meios-gestos.
As palavras, estas sim, são as senhoras gordas na passarela da beleza. Somente o sujeito desesperado, e deveras traído, ainda a ama. Ele não precisa marcar em si o gume da traição, porque se trai por si, por ser ainda um gritante apaixonado, um inacreditável amante das palavras, logo as palavras, logo a marcha ré de nossos trilhos, mesmo que andemos a mil. O amante das palavras anda perdido na sua própria descrença, porque ama aquilo que não encanta nem mais aos casais fiéis; o amante das palavras tornou-se um triste defensor de minorias, e quando o sujeito propõe-se a isso, não precisa jogar-se a nenhum tipo de desmerecimento. O amante das palavras é, antes de tudo, um tolo. Já não sei se por sua idealização secular, ou por qualquer coisa de espantoso nas curvas líricas dessas palavras cada vez mais escassas. Não há palavra que não seja trágica em sua essência mais sádica. O repúdio reacionário à palavra explica-se antes pela dita cuja, que pelos seus acusadores: a palavra suga um homem até vê-lo nu e extasiado, e ela é imortal, não importando ser um homem de bem ou um canalha, todo ele que se atreva a conceber a palavra, está concebendo, também, a própria escravidão. Eis única verdade que exala a cada verso: o desamor à palavra é de uma covardia atlética, nobríssima, amável. O homem covarde é ululante, e ainda assim é um espelho para as gerações seguintes. É por não se saber mais que covarde, que fugimos da austera palavra, e está explicado. E é por sermos gloriosos indigentes, que nos jogamos aos braços do silêncio amigo.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Breve Resenha sobre Pink Floyd: The Wall (1)

Com carinho, ilustre Maga:

Ao passo calmo e errante, de uma imprecisão que de tão silenciosa é mais que um grito infinito, o muro vai se erguendo assim sem ordens, sem fronteiras já antes ditadas, senão pelos limites mais humanos e mais desconhecidos dessa humanidade enfim revelada, desses erros assim escondidos em cada olhar que nos nega, medonhos como a epifania mais desesperadora, mas natural como o desespero a cada amanhecer. É, enfim, o muro dos mais absurdos sonhos e da inexistência mais indiferente, mas é um muro: límpido, avassalador, ditador. Não somente cresce como cerca, e cerca como a loucura crescente, surgida senão de uma dúvida, já não se sabe se somos mais um tijolo no muro ou se o somos por completo. Enfim, muro cada vez menor aos olhos dos libertados, mas gigantesco ao frágil e desconexo coração humano, tão menino, ainda que tão ousado. Eis o homem jogado ao seu próprio muro, incerto quanto a sua própria lucidez e sua coragem, incerto sobre sua existência, que de tão efêmera é quase um sopro despretensioso, mas é, sobretudo, incômodo. É senão um vento fortíssimo que vai empurrando o muro, vai fechando-o como que uma ferida dolorosa, e não há espaço para ninguém a não ser a nós mesmos. Estamos sós na escuridão gritante de nossos muros. Imploramos essa solidão, sonhamos com ela, mas quando em face dela, resta-nos procurar o irmão mais próximo, mas ele é ausente: está do outro lado do muro. O tempo é curto e o espaço é mínimo, não cabemos mais do lado de fora: é quando dentro de nós há uma imensidão, e é nela que, atônitos e instintivos, vamos nos jogar,
The Wall é a manifestação musical de todo o emaranhado de pensamentos, sensações e desconcertos que há em nós. Um choque. Um choque de verdades que nos esbofeteiam a cada segundo e nos fazem estar de pé, ainda que tantas vezes estejamos cansados o suficiente para não seguir em frente.

Breve Resenha sobre Pink Floyd: The Wall (2)

O álbum, em sim – mesmo que classificado como ópera-rock, experimental, essas classificações não têm valor diante da obra – foi produzido no conturbado ano de 1979. Conturbado e nada favorável aos padrões floydianos de músicas, visto o crescimento de bandas de Punk Rock, seguindo a rejeição às músicas de cunho psicodélico e reflexivo que permeavam os anos 1960. Um primeiro passo para a ignorância escancarada dos nossos dias. Além disso, foi um marco para o fim do Pink Floyd. Sendo o álbum quase uma auto-biografia do baixista Roger Waters, que não soube medir seu desejo de impor suas idéias, acabando por querer determinar toda a rotina de produção da banda, que culminou numa briga judicial das mais constrangedoras e importantes, na história da música. É um álbum desnecessário, por tudo o que a banda já havia dito nos álbuns anteriores, mas a sua inutilidade é sobretudo encantadora e misteriosa, e faz do The Wall um convite a uma viagem singular. Uma viagem por si mesmo, mostrando que o homem é antes um oceano de contradição e intensidade, que um vazio constante e óbvio.
O álbum, em sua tamanha magnitude, deu origem ao filme, produzido logo em 1982. Pink Floyd: The Wall não tem, nem precisar ter grandes diálogos. É quando a existência fala por si. Pink caminha pelo tempo tropeçando em perdas – como a do pai, morto na II Guerra – e de relações indiferentes e incômodas, tome a mãe obsessiva – presente, principalmente, na música Mother, de uma beleza solitária – e do professor rígido e incompreensível – na aclamada Another Brick in The Wall. O filme, na atuação dos atores – principalmente Bob Geldof, no papel de Pink, mais velho – foi tantas vezes citado como incompetente na representação do álbum. É uma mentira que ecoa vagamente e por repetições equivocadas. A leitura não se deve restringir ao metodismo do certo e do errado, mas respeitar a subjetividade do que se está lendo. O filme é intrigante, do começo ao fim. É a perturbação a cada segundo, no olhar das personagens, nos seus gestos, no lirismo de cada música, na recepção de cada espectador. Pink depara-se com o pai morto, mas com o tempo ele vai, também, morrendo, por se crer vazio, por caçar sem sucesso um sentido para si. Não há vida que tenha sentido, Pink, nem o deve ter, e é justamente pela falta dele que vamos criando nossos diferentes nortes e trilhando nossos sedutores caminhos. Essa é a grande página do The Wall. É a narrativa da vida, desde as descobertas infantis aos pormenores das convivências e as batalhas enfrentadas ao longo da vida adulta. Todas as letras das músicas,- vale saber que poucas músicas do álbum são cantadas no filme - obedecendo sua ordem postada, declaram isso. Pink tem o pai morto na guerra, a mãe o controla até onde seja possível – “Mamãe vai sempre descobrir por onde você esteve/ Mamãe vai sempre manter o bebê saudável e limpo” - o professor o tem como alvo – “Quando nós crescemos e fomos para a escola/ Haviam certos professores/ Que machucavam as crianças de qualquer forma possível”. Eis que Pink cresce, vira um grande artista do rock, mas sofre como sua adaptação ao mundo, ou a falta dela. As cenas percorrem estagnadas e atraentes ao longo dos conflitos que seguem, como se o pesar pela infelicidade do outro pesasse em nós. Mas há que se pensar a forma como encaramos essas situações. O filme está embriagado de um pessimismo profundamente simbólico, mas excessivo. Verdadeiramente árido de se encarar, como se a única saída para um mundo que não nos aceita seja a criação de um novo mundo, totalmente íntimo e desordenado em alucinações, cercado por um muro que nos distancia de toda e qualquer realidade insistente e indesejada. É uma saída, não sendo a única. Num certo momento, Pink se vê esgotado. É o cume de sua introspecção e loucura. Numa cena fortíssima, totalmente raspado, inclusive as sobrancelhas, Pink se vê dopado e sem saída, quando o incontido Si menor inicial de Comfortably Numb é disparado, inconseqüente. Surge uma das mais emblemáticas e autênticas músicas do Pink Floyd. Comfortably Numb é o mergulho descuidado de insensatez. É quando destrinchamos cada cenário deste mundo paralelo e cada vez mais dono de seu criador. Num mesmo devaneio, Pink se vê um ditador implacável, manipulador de uma legião de seguidores, mandando seus opositores contra o muro. É uma óbvia alusão ao sistema Nazista, prova das preocupações sociais contidas no álbum e no filme. Pink já não está em si. Parece a vitória de todos os que o fizeram um jovem reprimido, e sua desistência é iminente. É o final de um labirinto somente percorrido por espectadores sem fôlego, que num julgamento surreal poderão ver seus muros como uma prisão ou um escape à própria liberdade.
Numa mistura de êxtase e contemplação, cerramos nossos olhos ao fim do filme. Quando tornamos a abrir, já não são mesmas as coisas, nem nossos olhares apressados ao mundo que encaramos despercebidos. Talvez a grande mensagem do filme não seja sobre muro algum, nem ilusão alguma. Mas que nossa existência é qualquer coisa real e valiosa a ponto de não entendermos nunca, mas encará-la. E que nossas vidas, antes de estarem presas num muro imensurável, podem estar pobremente sujas como a garrafa que o menino limpa no final do filme. Talvez não seja preciso nos isolar para mudar o mundo, mas limparmos nossos corações e seguir em frente.